Falta de opções de transporte rodoviário entre estados dificulta a rotina e onera o bolso do cidadão

Poucas linhas e atendimento precário tornam a vida do usuário do transporte de longa distância um martírio

Falta de opções de transporte rodoviário entre estados dificulta a rotina e onera o bolso do cidadão

A cada dois meses, dona Meire Maria, de 67 anos, viaja 14h de ônibus entre Caratinga (MG) e São Paulo, para visitar os dois filhos, e os netos. A aposentada, que vive há oito anos na cidade mineira, distante cerca de 120 quilômetros de Governador Valadares (uma das mais importantes do estado), faz o trajeto até a capital paulista com a família e logo retorna a Minas Gerais, onde cuida do pai de 95 anos.

Mesmo acostumada com a longa viagem e estradas nem sempre nas melhores condições, “Dona Meire”, como é conhecida, não mede esforços pela família. “Morro de saudades dos meus filhos e netos, é muito difícil ficar longe”, conta a aposentada.  Para fazer as suas visitas, ela gasta em média, R$ 107,00 por trecho, em assento convencional. Se for leito, o valor pode chegar a R$ 376,00, o que inviabilizaria viajar com frequência para ver a família.

O transporte de passageiros de longa distância é um direito social que possibilita o acesso a outros direitos essenciais, como educação, saúde e lazer. No caso da saúde, por exemplo, o brasileiro precisa percorrer, em média, 72 quilômetros para receber atendimento médico e 150 quilômetros para fazer cirurgias e outros procedimentos, segundo um levantamento feito pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2020. “E nesses deslocamentos, é justamente a população mais pobre a mais afetada", reforça o CEO da FlixBus no Brasil, Edson Lopes.

Outro recorte traz o mesmo cenário: falta de mobilidade que impacta o cidadão no seu dia a dia. O Boletim do Turismo Doméstico (2021) mostra que pessoas cuja renda familiar é menor que um salário-mínimo viajam mais por necessidade: 31,1% se deslocam em busca de tratamentos médicos.  

A viagem de ônibus, na prática, é essencial para a população: 30% dos brasileiros não viajam por falta de condições financeiras, segundo o mesmo boletim. Edson Lopes destaca que “no nosso cenário econômico, o ônibus é cada vez mais relevante e, quanto mais empresas atuarem no transporte interestadual do Brasil, essas regiões terão mais opções tanto em qualidade quanto em segurança, como em preço. A falta de concorrência no setor impacta a saúde, a educação, a vida dos moradores de cidades com menores, com menos acesso a serviços, e que o transporte interestadual faria muito mais a diferença".

É a história do jovem eletricista Sebastião Neto, de 22 anos, que saiu de Juazeiro do Norte, no Ceará, também rumo a São Paulo, enfrentando uma viagem de mais de três dias de ônibus em busca de novas oportunidades de trabalho. Neto trabalha como autônomo e, sempre que há uma perspectiva de emprego ou projeto, o jovem se desloca independentemente do local. “Vim a São Paulo porque uma empresa está com uma obra e estava tudo confirmado para eu começar a trabalhar daqui a dois dias, mas infelizmente deram para trás e estou voltando para o Ceará”, conta o jovem, que aguardava o ônibus também no terminal rodoviário do Tietê, em São Paulo.   

Apesar do sacrifício e das inúmeras paradas, que tornam a viagem bastante cansativa, Neto sabe que não há muitas alternativas para esse trajeto, e não tem condições de arcar, por exemplo, com uma passagem aérea que pode custar até 10 vezes mais, dependendo da época do ano, o que impacta na oferta e na demanda. De ônibus, o valor pode variar de R$ 189,00 a R$ 570,00 o trecho, dependendo da operadora e do tipo de assento. Há rotas como São Paulo-Rio de Janeiro, por exemplo, em que o preço do aéreo pode ser até 20 vezes mais alto. 

Essa é uma discussão que acontece desde 2014 no setor e que ganhou contornos de tensão no final de 2023, quando a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) aprovou, no apagar das luzes do ano legislativo (em 21 de dezembro), o novo marco regulatório do setor TRIP (Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros).  

O marco entrou em vigor em 01 de fevereiro deste ano e, embora muito aguardado pelo mercado e pela sociedade, ainda não permite o pleno desenvolvimento do setor de transporte de longa distância no Brasil. “O marco aprovado mantém a proteção aos oligopólios, que são as grandes viações que dominam o setor. Apesar da grande base de operadores rodoviários no Brasil nos diferentes modelos de operação, mais de 75% dos mercados autorizados no transporte interestadual de passageiros estão em regime de monopólio, e mais de 90% das rotas são operadas em oligopólio com apenas uma ou duas empresas", reforça o executivo.  

Na prática, o novo marco limita o direito de escolha dos passageiros e restringe a cobertura da prestação do serviço. Para cidadãos como dona Meire e Sebastião, que cruzam estados com frequência, as novas regras do setor preocupam porque limitarão a concorrência do mercado. "Seria bom a gente ter mais opções para escolher, pelo preço e horário, por exemplo”, diz a aposentada.  

Assim como Dona Meire e Neto, a população brasileira precisa de um transporte rodoviário mais amplo, com opções de linhas e empresas. De acordo com dados da ANTT, em março de 2023, havia 224 empresas com linhas autorizadas a operar. Além disso, mais de 80% dos mercados operados hoje pelo TRIP são em regime de monopólio/duopólio, e 50% dos mercados classificados como principais também - os que tem restrições mais severas a entrada de novos competidores. “Os números mostram que há mercado potencial a ser explorado, com espaço para novos entrantes e para os que já estão atuando”, complementa Lopes.   

Histórias como essas são comuns nas rodoviárias pelo país - especialmente no chamado Brasil “profundo”. Desde pessoas que saem em busca de oportunidades de trabalho, para encontrar familiares que moram longe, passando por situações inclusive mais tensas – um casal, que não quis se identificar, veio para visitar uma tia, e foi assaltado na rodoviária. Haviam perdido todos os documentos e estavam atrás dos trâmites para poder voltar à Bahia, terra natal.  

Há uma perspectiva de impacto econômico positivo real com os novos entrantes e a abertura de mais linhas. A falta de competitividade só reforça o desperdício de oportunidades para as empresas que querem construir um setor forte e de qualidade para a população, que hoje se vê limitada em opções de transporte de longa distância”, finaliza Edson Lopes.