"Atlas dos Sistemas Alimentares do Cone Sul" - pesquisa realizada pela Fundação Rosa Luxemburgo e a Editora Expressão Popular revela crise alimentar em diversos países

Estudo aponta desafios estruturais e alternativas promissoras para a segurança alimentar

"Atlas dos Sistemas Alimentares do Cone Sul" - pesquisa realizada pela Fundação Rosa Luxemburgo  e a Editora Expressão Popular revela crise alimentar em diversos países

Em meio às complexidades geopolíticas e econômicas que definem nosso mundo, o problema da fome emerge como um desafio cada vez mais presente. Para refletir sobre o tema, a Fundação Rosa Luxemburgo e a Editora Expressão Popular lançaram o "Atlas dos Sistemas Alimentares do Cone Sul", um trabalho que não apenas descreve, mas também analisa profundamente as raízes e ramificações dessa realidade.

Em junho de 2022, quando a primeira edição do Atlas foi lançada, a pandemia ainda dividia preocupações globais ao lado de um outro acontecimento que impactou o mundo durante esse
mesmo período, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Desde então, o número de pessoas que passam fome aumentou em 150 milhões, segundo o mais recente Relatório do Estado da Segurança
Alimentar no Mundo (SOFI-FAO), o que corresponde a um continente de pessoas famintas equivalente ao dobro de habitantes do Reino Unido.

Diante de cenários como esses, com crises sucessivas, cada vez mais globais e intensas que afetam a sociedade em uma ampla gama de aspectos, o Atlas surge trazendo, em sua primeira parte, um contexto profundo a respeito das crises desencadeadas por um modelo econômico que, ironicamente, tem se mostrado ineficiente em alimentar adequadamente a população da Argentina,
Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, regiões abundantes em recursos naturais. Esses cinco países apresentam índices de desenvolvimento humano (IDH) altos e possuem cerca de 8,3% da área
agrícola do planeta, com 3,5% da população mundial. Já na segunda parte, são discutidos sobre como o modelo do agronegócio não pode ser a única forma de produzir e distribuir alimentos.

"Relatamos diversas estratégias de abastecimento de alimentos desenvolvidas a partir de um modelo baseado na soberania alimentar e na agroecologia. Sistemas de produção que, da semana ao prato, do campo à cidade, buscam produzir alimentos saudáveis, sem destruir a natureza, a preços justos, inseridos em processos de cooperação transformadora, combatendo a fome e a desigualdade", declara Jorge Pereira Filho, que é um dos organizadores da publicação.

O paradoxo alimentar

O estudo ressalta que a fome não surge da ausência de alimentos, mas revela uma realidade que contradiz essa ideia. Enquanto o Cone Sul é uma região produtora excedente de alimentos agrícolas e pecuários, milhões de pessoas enfrentam diariamente a escassez alimentar. Um exemplo vívido dessa paradoxal situação foi observado em Cuiabá, capital do Mato Grosso, durante a pandemia. Lá, duas vezes por semana, pessoas famintas se reuniam em frente a um frigorífico em busca de doações de ossos de vaca, em um estado que possui nove vezes mais gado – cerca de 32 mil cabeças – do que habitantes.

A grande questão encontra-se na prioridade dos grandes produtores pecuaristas. O estado bateu duas vezes os recordes de exportação de carne bovina, com o aumento da demanda dos países
asiáticos. A maior parte de toda a produção foi enviada para mercados estrangeiros.

Apesar do aumento significativo das exportações no setor primário ao longo das últimas décadas no Cone Sul, esse crescimento não foi traduzido em empregos no campo. Pelo contrário, foi observado um êxodo gradual das áreas rurais para as periferias urbanas, resultando em um aumento populacional nessas regiões. No Mato Grosso, a expansão pecuária da região ocorreu em paralelo ao desmatamento da Amazônia, à violência contra comunidades indígenas e a relatos de condições de trabalho análogos à escravidão.

Essa tendência não é exclusiva do Brasil, afetando também países como Argentina, onde a participação dos produtos industrializados nas exportações caiu de 35% em 1989 para 15% atualmente, e o Brasil, cuja participação diminuiu de 59% em 1993 para 27% atualmente. Essa mudança resulta em impactos abrangentes, incluindo a degradação ambiental, o uso excessivo de agrotóxicos, a expulsão de comunidades tradicionais para liberar terras e o crescimento desordenado das áreas urbanas.

Nesse contexto, a insegurança alimentar surge como mais uma manifestação das desigualdades sociais, onde os estados falham em garantir o acesso à alimentação como um direito fundamental,
priorizando políticas que favorecem a exploração desenfreada dos recursos naturais, conhecida como neoextrativismo.

"A produção no campo continua a crescer na região, mas não é destinada a matar a fome de quem mais precisa: em vez disso, a prioridade é o mercado externo. Ou seja, falta comida na mesa do povo, mas cada vez mais os lucros do agronegócio batem recorde, amparados nas exportações. Nessa equação, a política desempenha um papel central, pois sustenta um modelo que gera riqueza para poucos e produz fome para milhões", declara Patricia Lizarraga, co-organizadora da publicação.

Caminhos para a soberania alimentar

Diante de um cenário como esse, o "Atlas dos Sistemas Alimentares do Cone Sul" apresenta algumas possíveis soluções para mudar essa realidade. Dentre elas, o romper com o modelo predominante do agronegócio, que é um dos principais responsáveis pelo cenário atual. Para alcançar esse objetivo, a pesquisa aponta a necessidade da união de forças sociais, tanto do campo quanto das áreas urbanas, em prol da defesa dos territórios, da construção da soberania alimentar e da busca por um país mais justo e democrático.

O estudo ainda revela a necessidade da construção de um novo modelo para o campo e sua relação com as cidades, garantindo a agricultura familiar, camponesa e indígena, e que esses grupos tenham acesso irrestrito aos recursos comuns, como terra, água e sementes. Sem isso, a soberania alimentar permanecerá inalcançável.